Poetas bizarros na web
Augusto de Campos

Retrato de Luigi Groto, por Tintoretto

No texto “Dos Poetas Bizarros a Hopkins” do meu livro  Verso Reverso Controverso (1978), ocorreu-me abordar uma área escassamente visitada até mesmo pelos estudiosos da poética barroca. A dos “maneiristas” italianos, que vi mencionados no livro de Gustavo Adolfo Hocke, Manierismus und Literatur —   os chamados “poetas bizarros”,  Luigi Groto (1541-1581) e Ludovico Lepóreo (1588-c.1655). O primeiro,  um precursor (Rime, 1577), o segundo,  sucessor  (Leporeambi Alfabetici, 1639) do mais famoso dentre os poetas italianos da época, Giambattista Marino  (1569-1625),  cujos primeiros versos, reunidos em suas Rime, foram publicados em 1602 e que deu o seu nome a toda uma geração barroca, historicamente conhecida por Marinismo.

Quando escrevi aquele estudo,  eu  só conhecia, dos dois poetas, os trechos dos sonetos a que Hocke se referira, citados por mim com um esboço de tradução da primeira estrofe  do poema de Groto. A quadra de Leporeo parecia-me intraduzível. “A julgar pelos exemplos de Hocke — eu escrevia — trata-se de poetas que levaram mais longe que o próprio Marino, o sonorista por excelência do Barroco italiano, os experimentos da faixa melopaica.”

Só recentemente, e graças à internet, pude conhecer completamente essas e outras obras dos dois expoentes do “maneirismo”. E até mesmo uma antiga biografia, em fac-símile, La Vita di Luigi Grotto, Cieco d'Adria , por Giuseppe Grotto, datada de 1777.  Através dela, fica-se sabendo com muitos detalhes da vida atribulada do poeta,  Groto ou Grotto,  nascido na cidade de Adria, no Vêneto, de pais nobres, e cego de nascença. Entre outras proezas, traduziu o primeiro Livro da Ilíada e sofreu um processo por heresia sob a acusação de haver lido confessadamente textos de Erasmo de Rotterdam e outros autores proibidos. Como teatrólogo, há quem discuta a hipótese de que ele tenha influenciado Romeu e Julieta (1595-1596) de Shakespeare, com sua tragédia La Hadriana (1578).

Para se ter idéia do preconceito que, duzentos anos depois, ainda impedia a plena aceitação dos seus poemas, mesmo reconhecida  a sua habilidade artística, transcrevo este trecho da Vita, extraído da advertência que precede o soneto aludido por Hocke e relegado pelo biógrafo a  uma nota: “Não faltava àquele Cego vivacidade de engenho, facilidade de verso, boa frase e  cor poética, para tornar-se um grande Lírico, mas a demasiada fecundidade de sua férvida fantasia, que ele não soube moderar, e a corrupção do bom gosto, que se iniciou naquele tempo, o prejudicaram muito.  Por isso, em um volume tão grande de Rimas, pouquíssimas são aquelas que não sofram dos defeitos do Século XVII, e não tenham mais que novidades caprichosas e extravantíssimas. E sem contar os Sonetos bíblicos, os ‘sotádicos’ ou retrógrados e com Ecos contínuos, basta dizer que chegou a colocar em um Soneto até cinquenta e seis rimas; num outro, fazendo-se “Letrista”, todas as palavras principiam com a letra D;  à tal bizarria foi levado  pelo ardor que dedicou a uma certa Didania, em louvor da qual o compôs. Veio por isso mesmo a ser não poucas vezes acusado da depravação das belas Letras daquele século.” Em sua nota, o biógrafo publica alguns dos sonetos mencionados, para dar exemplos das "extravagâncias do Cego", incluindo o que agora traduzo por inteiro, desdenhado como “solene mixórdia”:

 

A un tempo temo, e ardisco, ardo ed agghiaccio
Quando all' aspetto del mio amor mi fermo,
E stando al suo cospetto allor poi fermo
Godo, gemo, languìsco, guardo e taccio.

Al gel m' apprendo e al gran foco mi sfaccio;
Nasco e mi scorgo morto; sano  e infermo;
Casco e risorgo; mi do in mano e schermo;
Al Ciel ascendo e in umil loco giaccio.

Per la mia donna or morto or vil mi trovo;
La spene casso e spero; offro e ricoglio;
Ho pene e gioie; ho pianto e riso alterno;

Per madonna stato erto ed umil provo;
Vo basso e altero; or soffro ora mi doglio;
Ho bene e noie,  paradiso e inferno.



A um tempo temo e tremo, ardo e gelo
Quando no encanto desse amor me prendo,
E olhando o seu semblante em flor me rendo,
Gozo, gemo, enlangueço, calo e anelo.

No fogo me desfaço, ao frio me rendo;
Nasço e me vejo morto, são e enfermo;
Caio e ressurjo e dou-me a mão no ermo
Frio em que estou, e logo ao Céu ascendo;

Por minha dama ou morto ou vil me provo;
Aspiro e expiro e espero sem alento;
Dor e alegria, pranto e riso alterno;

Do Céu caído, humilde me renovo.
No alto ou embaixo sofro e me lamento
De amor e morte, paraíso e inferno.


Como eu já referia em Verso Reverso Controverso (1979), Lepóreo se considerava “o inventor da poesia alfabética”,  em textos que denominava “leporeambos”, a partir do seu próprio nome. Queria, em suas palavras, “tornar difícil o verso italiano”. Segundo Hocke, “através de virtuosidade e extremismo ele chega quase a um uma técnica perfeita e com uma semântica identificável e poderosa, buscando nas semelhanças e proximidades entre as palavras um fator de “atração estranha” para criar momentos pregnantes de emoção em meio ao seu caótico verbalismo.

Lepóreo publicou em 1634 o seu Decadário Trímetro, coletânea de poemas de dez versos, cada qual com três  rimas iguais , duas internas e  uma na final, que se sucedem em ordem vocálica alfabética. Em  1639, saíu o  Leporeambo Alfabetico Heróico. O poeta adotava formas diversas e extravagantes, mesmo submetendo-se à disciplina do soneto, predominante,  mas sobrecarregado  de rimas ricas, com ênfase na sucessão das internas, e extraordinário uso de paronomásias, aliterações e assonâncias.  A seguir, publicou outras coletâneas desses textos, os Leporeambi Alfabetici Musicali (1639), os Leporeambi nominali (1641), sonetos dedicados a mulheres pela ordem alfabética dos seus nomes, e, finalmente,  a já mencionada Centuria di Leporeambi, que varia do gênero lírico ao humorístico e satírico, dos decassílabos aos “tredecassilabos”, ou trezenos,  dos uníssonos aos septíssonos, e a outras versos, com toda a sorte de combinações em muitos metros.  Nascido em Brunghera. província de Pordenone, na região do Friul-Veneza Júlia, foi escrivão eclesiástico, sob o papado de Clemente VII, em Roma, onde morreu. Além dos “lepoerambos”, publicou uma tradução da Arte poética de  Horácio.

Na internet (sabendo procurar, é uma maravilha!), encontrei também o soneto apontado por Hocke, dentre as peças que compõem a Centúria, precedidas, na edição original,  pela ilustração do holandês Wenzel Hollar (1607-1677) — uma paisagem ambivalente cujas linhas externas formam um perfil humano, a lembrar os conhecidos retratos compósitos  de Arcimboldo.

HOLLAR
Paisagem - Wenzel Hollar (1607-1677)

Eis aqui o soneto —“lepoereambo alfabético endecassílabo sextíssono trimembre irrepetido (-ella,  -illa. -olla,  -ulla).”

 

Sudo ignudo, egro e negro, entro una cella,
cufa stufa, ove piove il grasso a spilla;
mentre il ventre ivi a rivi il sangue stilla,
grido e strido, asmo, spasmo, e muoio in quella.

Bolso ho il polso, agro, magro, e sto in barella,
strutto e brutto, irto spirto che oimè strilla,
morto a torto, unto e smunto, per Plautilla,
che mi diè questa in testa pelarella.

Scotto inghiotto arso e scarso, e carne frolla,
tosto arrosto, acqua sciacqua, e vino nulla;
scialbo e falbo, ambe gambe e 'l piè tracolla.

Piango in fango alto, smalto di pesculla;
ahi, pescai cospi e rospi, e sputo colla:
bei trofei trassi ai chiassi di fanciulla!

Suo, nu, ogro e negro, numa cela,
cova cava, onde a chuva ainda cavila;
dentro do ventre o sangue me fibrila,
aflito grito e, pasmo, o espasmo gela.

Pulso expulso, agro e magro, vejo a estrela;
luto no lodo, enquanto ela cintila;
morto a torto, ergo e vergo só por vê-la,
tanto é o ardor da dor que me aniquila.

A crosta cresta, a carne se estiola,
mágoa e não água, boca seca e nula;
falho e falto e sem fé meu pé se atola;

Clama a alma na lama que me assola.
Ah, pesco asco e cisco e cuspo cola,
tristes troféus que trago à que me anula.



Contrariamente ao que pensavam aqueles que não sabiam ler tais textos, um olhar despreconcebido perceberá que, aqui,  não se trata de palavras vazias, mas de associações e disjunções verbais capazes de expressar, com grande intensidade,  situações afetivas conflituais, levadas ao extremo, próximas do desespero ou do desvario amorosos.  Uma edição crítica da Centúria (1993) —  cujos versos, aliás,  podem ser lidos integralmente na internet — é precedida de uma notável introdução de autoria de Valter Boggioni, na qual o  critico se propõe a releitura minuciosa “de uma obra tão citada, mas tão  escassamente conhecida.” Detém-se sobre a sua origem e a sua originalidade, a despeito da reconhecida precedência de outros autores experimentais, como Groto, e confirma a sua inserção na categoria poundiana da “melopéia”, coincidindo, assim, com as observações que a esse respeito eu fizera em meu livro. Entre outras ricas leituras e interpretações críticas,  acentua que na poesia leporeana há predominância do significante sobre o significado, mas muito raramente “nonsense”. E sublinha a sua radicalização do marinismo, caracterizando-a sobretudo como “poesia-música”. O próprio poeta, em sua introdução à Centúria,  fala em  “melodia in prosa ed in poesia”.

A avaliação do Barroco literário, rejeitado por séculos,  mudou muito. Recuperado pelos poetas modernos, desde a geração de Lorca, que resgatou a poesia de Gôngora — talvez o mais contestado dentre os seus expoentes — passou a ser objeto de alentados e significativos estudos como os de Curtius, Hocke, e Dámaso Alonso, entre muitos outros. E o seu legado, que entre nós conta com as notáveis realizações de Vieira e Gregório de Matos, é hoje visto como um desvio singularmente criativo da norma clássica, uma linguagem ousada e inventiva que continua a influenciar as poéticas da modernidade. De certo modo, Gôngora foi reabilitado por Mallarmé, como Marino por Marinetti apesar da proclamada aversão dos futuristas pelo passado. Pound, que sempre sustentou uma visão negativa do gongorismo, embora  fosse paradoxalmente apaixonado pela linguagem difícil e enigmática do trovador provençal Arnaut Daniel, parece ter moderado o seu juízo, nos últimos tempos. Numa carta do St. Elizabeths Hospital,  de dezembro de 1954,  dirigida  a William Carlos Williams  — a correspondência entre eles parece uma troca de cartas entre D. Quixote (EP) e Sancho Pança (WCW) — encontrei, com surpresa, este paradoxal elogio de Pound a Gôngora, vazado no peculiar e intraduzível EZamericanês com o qual transcreve foneticamente a pronúncia coloquial,  e aqui sintetizado em português básico e… sem os  palavrões intermediários: “Não pude achar NADA do que os críticos dizem sobre ele. Simplesmente uma escrita muito clara e límpida, descritiva, não passional”… (v. Selected Letters of WCW and EP, New Directions, 1996, p. 293).

O “maneirismo” italiano certamente pode ser compreendido na rubrica geral do barroco literário, sob uma perspectiva mais abrangente. Mas os poetas de que falo se  notabilizam por uma radicalização dos processos compositivos da época —, por isso mesmo  distinguidos como "bizarros". Era a esquerda da esquerda barroquizante,  “à margem da margem”, na expressão pignatariana. No entanto, aos olhos de hoje, a sobrecarga de sons e combinações vocabulares dessa poesia  faz pensar, comparativamente, em outras “bizarrias” significativas, como as montagens ilusionistas do pintor Arcimboldo (1527-1593), contemporâneo de Groto,  ou as dissonâncias precursoras dos madrigais de Gesualdo, Príncipe de Venosa (1566-1613), também da época de Lepóreo; ou, para ficarmos no âmbito literário, nos posteriores monossílabos permutacionais do barroco alemão Quirinus Kuhlmann (1651-1689).

Animado pela descoberta dos textos dos dois poetas, tentei o que me parecia impossível: trazer para a nossa língua os dois exemplos de uma poesia que não foi entendida no seu tempo a não ser como modelo de excentricidade ou insensatez. Hoje, uma avaliação despreconcebida poderá descobrir neles um senso poético refinado, no qual se entrelaçam  “amor&humor” — para lembrar a síntese oswaldiana —, um humor “cinza” ou ”negro”, por certo, o dessas heresias paródicas que explodem todas as conveniências, sem  fugir às dificuldades  do artesanato em seus textos, tratados com rigor e virtuosismo.  Em termos modernos, respondem,  com todas as suas limitações,  a propostas  radicais, como a “ecolália” poética de um Hopkins,  a “elefantíase” sonora do Phantasus de Arno Holz, ou  à linguagem de propositados lapsos e atos falhos paronomásticos e pluri-semânticos do  Finnegans Wake, virtuosismo dos virtuosismos, bizarria das bizarrias.


Links

La vita di Luigi Grotto
Centuria di Leporeambi