Machado de Assis | Heinrich Heine

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13 de maio

Enfim, lei. Nunca fui, nem o cargo me consentia ser propagandista da abolição, mas confesso que senti grande prazer quando soube da votação final do Senado e da sanção da Regente. Estava na rua do Ouvidor, onde a agitação era grande e a alegria geral.

Um conhecido meu, homem de imprensa, achando-me ali, ofereceu-me lugar no seu carro, que estava na rua Nova, e ia enfileirar no cortejo organizado para rodear o paço da cidade, e fazer ovação à Regente. Estive quase, quase a aceitar, tal era o meu atordoamento, mas os meus hábitos quietos, os costumes diplomáticos, a própria índole e a idade me retiveram melhor que as rédeas do cocheiro aos cavalos do carro, e recusei. Recusei com pena. Deixei-os ir, a ele e aos outros, que se juntaram e partiram da rua Primeiro de Março. Disseram-me depois que os manifestantes erguiam-se nos carros, que iam abertos, e faziam grandes aclamações, em frente ao paço, onde estavam também todos os ministros. Se eu lá fosse, provavelmente faria o mesmo e ainda agora não me teria entendido... Não, não faria nada; meteria a cara entre os joelhos.

Ainda bem que acabamos com isto. Era tempo. Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os atos particulares, escrituras e inventários, nem apagar a instituição da história, ou até da poesia. A poesia falará dela, particularmente naqueles versos de Heine, em que o nosso nome está perpétuo. Neles conta o capitão do navio negreiro haver deixado trezentos negros no Rio de Janeiro, onde “a casa Gonçalves Pereira” lhe pagou cem ducados por peça. Não importa que o poeta corrompa o nome do comprador e lhe chame Gonzales Perreiro; foi a rima ou a sua má pronúncia que o levou a isso. Também não temos ducados, mas aí foi o vendedor que trocou na sua língua o dinheiro do comprador.  

Machado de Assis: Memorial de Aires, 1908



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Navio negreiro


I

Sr. Van Koek, o sobrecarga,
Mergulha em contas na cabine,
Calcula os gastos da empreitada,
Depois o lucro ele define.

"Pimenta e pelas de borracha,
Marfim do bom e ouro em pó –
Tonéis e caixas – mas eu acho
A carga escura bem melhor.

Seiscentos negros lá do Níger
Que barganhei no Senegal;
Tendões de aço e pele rija,
Tal qual estátuas de metal.

Troquei por caixas de birita,
Contas de vidro e armamento;
Caso a metade sobreviva,
Hei de lucrar uns mil por cento.

Se ao cais do Rio, em bom estado,
Levar trezentos, venderei
Cada cabeça a cem ducados
À Casa Gonçalves Pereira."

De súbito, a meditação
Do sobrecarga é interrompida;
O médico da embarcação,
Van der Smissen, o requisita.

Um narigudo macilento
De cara toda enverrugada –
Van Koek pergunta: "Aí, barbeiro,
A quantas anda essa negrada?"

"Estou aqui nesse tocante",
Diz o doutor com gravidade,
"Cresceu a nível preocupante
A taxa de mortalidade.

Em média perco dois por dia,
Mas hoje sete já morreram,
No livro-caixa eu fiz a lista:
São quatro machos e três fêmeas.

Examinei bastante os corpos,
Pois amiúde é negro esperto
Apenas fingindo de morto,
Pra se soltar no mar aberto.

As gargalheiras e grilhões
Eu removi; mandei jogar,
Assim que o dia clareou,
Os tais cadáveres ao mar.

Mal afundaram no oceano,
Já os abocanham os tubarões –
Ah, como gosta de africano
A clientela de glutões!

As feras seguem o navio
Desde que entrou em mar profundo,
E com que gozo doentio
Farejam o cheiro de um defunto.

É até engraçado observá-los
Estraçalhando a carne humana –
Uns mordem os braços, outros rasgam
Pernas e tronco, e com que gana!

E quando acabam de comer,
Todo o cardume olha pra mim,
Como se fosse agradecer
Por mais um matinal festim."

Findo o relato, o tal Van Koek
Suspira fundo: "Ora, eu preciso
Saber depressa o que fazer
Para estancar o prejuízo!"

Diz o doutor: "Morrem os negros
Por culpa própria nos porões,
Empesteando-o com doença
Que trazem dentro dos pulmões.

De tédio eles também se afundam,
Pois não se ocupam de trabalhos;
Talvez ar fresco, dança e música
Seja o remédio pra curá-los".

Van Koek se agita: "Boa dica!
Este barbeiro é mesmo grande,
Tão sábio quanto o Estagirita
Que deu lições para Alexandre.

O diretor da Sociedade
De Criadores de Tulipa
É esperto mas nem a metade –
A tua inteligência é ímpar.

Vamos à música! A negrada
Há de dançar lá no convés.
Quem não gostar de rebolar
Mando chicotear os pés".

II

No azul da abóboda infinita,
De olho sagaz e arregalado,
Feito os de uma mulher bonita,
Milhões de estrelas num bordado –

Olhando atentas o oceano
Se agasalhar em névoa púrpura,
Fosforecente-irradiante;
As ondas lânguidas sussurram.

Nada se move no velame
Da nau negreira; a calmaria
Envolve tudo; e só as chamas
Tremulam sob a algaravia.

Toca a rabeca o contramestre,
O cozinheiro no flautim,
A percussão faz um grumete,
O médico sopra o clarim.

Uma centena de africanos
Saracoteia, urrando alto;
A cada passo os ferros rangem
Num ritmo cadenciado.

Batem no chão em gozo e fúria;
E escravas lindas, sensuais,
Esfregam-se nos homens nus –
No ar espalham-se os ais.

O beleguim se faz de mestre
De cerimônia, e com o chicote
Anima aqueles que se negam
A requebrar e dar pinote.

Praticumbum prugurundum!
Todo o barulho despertou,
Na escuridão do mar profundo,
Estranhos seres do torpor.

Tontos de sono, os tubarões
Em bando vão subindo à tona,
Pra ver, esbugalhando os olhos,
O que lhes trouxe aquela insônia.

Já sabem que é de madrugada,
Cedo demais pro dejejum;
Bocejam pra conter a raiva,
Mostrando os dentes um por um.

Praticumbum prugurundum –
Se arrasta a dança noite adentro.
De impaciência, os tubarões
Cravam na própria cauda os dentes.

Eu creio que não apreciam
A música. Já disse um vate
Famoso inglês: "Jamais confie
Em feras que desprezam a arte".

Praticumbum prugurundum –
Se arrasta a dança noite afora.
Na gávea, o sobrecarga então
Faz o sinal da cruz e ora:

"Deus, pelo amor de Jesus Cristo,
Me poupa a vida da negrada!
Pecam por serem quase bichos –
Perdoa – não sabem de nada.

Cristo Jesus, lá do teu horto,
Salva meus pretos, eu te peço!
Se não chegar metade ao porto,
Deste negócio eu me despeço."


[1853]



Heinrich Heine

Tradução: André Vallias


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Texto e poema compõem o capítulo "Navio negreiro" do livro HEINE, HEIN? – Poeta dos contrários de André Vallias (Perspectiva, 2011).

Lançamento do livro

São Paulo: 18 de maio
, quarta-feira, das 19 às 22 hs, na Livraria da Vila – Al. Lorena 1731, Jardins; Rio de Janeiro: 14 de junho, terça-feira, das 19 às 22 hs, na Livraria da Travessa – Shopping Leblon.

Nota do tradutor

"Das Sklavenschiff": poema do livro Gedichte. 1853 und 1854, possivelmente inspirado na canção "Les nègres et les marionnettes" do cancionista francês Jean Pierre de Béranger, que, por sua vez, inspirou o poema homônimo de Castro Alves; o crítico Augusto Meyer (1902–1970), que também o traduziu, escreveu um instigante artigo – "Três Navios Negreiros", incluído na coletânea Os Pêssegos Verdes (2002) –, comparando os três poemas. Mais recentemente, foi publicado em tradução de Luiz Repa e Priscila Figueiredo, em Navios Negreiros (Edições SM, 2009).
Em "13 de maio" do Memorial de Aires, Machado de Assis se refere à seguinte estrofe do poema original:

       Bleiben mir Neger dreihundert nur
       Im Hafen von Rio-Janeiro,
       Zahlt dort mir hundert Dukaten per Stück
       Das Haus Gonzales Perreiro.