O monstro
Victor Hugo

 

Tradução de Machado de Assis

Para acreditar na pieuvre1 é preciso tê-la visto.

Comparadas à pieuvre, as velhas hidras fazem sorrir.

Em certos momentos parece que o elemento fugitivo que flutua em nossos sonhos encontra na realidade ímãs aos quais esses lineamentos se prendem, e dessas obscuras ficções do sonho surgem criaturas. O ignoto dispõe do prodígio e serve-se dele para compor o monstro. Orfeu, Homero e Hesíodo só puderam fazer a quimera; Deus fez a pieuvre.

Quando Deus quer, excede no execrável.

A razão desta vontade é o medo do pensador religioso.

Admitidos todos os ideais, se o terror é um fim, a pieuvre é uma obra-prima.

A baleia é enorme, a pieuvre é pequena; o hipopótamo tem uma couraça, a pieuvre é nua; a jararaca tem um silvo, a pieuvre é muda; o rinoceronte tem um chifre, a pieuvre não tem chifre; o escorpião tem um dardo, a pieuvre não tem dardo; o macaco tem uma cauda, a pieuvre não tem cauda; o tubarão tem barbatanas cortantes, a pieuvre não tem barbatanas; o vespertílio-vampiro tem asas com unhas, a pieuvre não tem asas; o porco-espinho tem espinhos, a pieuvre não tem espinho; o espadarte tem um gládio, a pieuvre não tem gládio; o torpedo tem um raio, a pieuvre não tem raio; o sapo tem um vírus, a pieuvre não tem vírus; a víbora tem veneno, a pieuvre não tem veneno; o leão tem garras, a pieuvre não tem garras; o gipaeto tem um bico, a pieuvre não tem bico; o crocodilo tem uma goela, a pieuvre não tem dentes.

A pieuvre não tem massa muscular, nem grito ameaçador, nem couraça, nem chifre, nem dardo, nem cauda, nem barbatanas, nem asas, nem espinhos, nem espada, nem descarga elétrica, nem vírus, nem veneno, nem garras, nem bico, nem dentes. A pieuvre é, de todos os animais, o mais formidavelmente armado.

O que é a pieuvre? É a ventosa.

Nos escolhos em pleno mar, onde a água mostra e esconde todos os seus esplendores, nas cavas de rochedos não visitadas, nas cavas desconhecidas onde abundam as vegetações, os crustáceos e as conchas, debaixo dos profundos pórticos do oceano, o nadador que se arrisca, arrastado pela beleza do lugar, corre o risco de um encontro. Se tiveres esse encontro, não sejas curioso, foge. Entra-se fascinado, sai-se apavorado.

Eis o que é esse encontro sempre possível nas rochas do mar alto.

Uma forma cinzenta oscila na água, da grossura de 1 braça e de meia vara de comprido; é um trapo; essa forma assemelha-se a um guarda-chuva sem capa; a pouco e pouco o trapo caminha para o homem. De repente abre-se, oito raios saem bruscamente da roda de uma face que tem dois olhos; esses raios vivem; flamejam ondeando; é uma espécie de roda desenrolada, tem 4 ou 5 pés de diâmetro. Desenrolamento medonho. Atira-se ao infeliz.

A hidra arpoa o homem.

Este animal aplica-se à sua presa, cobre-a, envolve-a com os seus longos braços. Por baixo é amarelada, por cima é térrea; nada pode imitar esse inexplicável matiz de poeira; dissera-se um animal feito de cinza, e morando na água. É aracnídeo pela forma, é cameleão pelo colorido. Irritada, torna-se roxa. Coisa horrível, é flácida.

Os seus nós garroteiam; o seu contato paralisa.

Tem um aspecto de escorbuto e de gangrena. É a moléstia feita monstruosidade.

Não se pode arrancá-la; agarra-se estreitamente à sua presa. Como? Pelo vácuo.

As oito antenas, largas na origem, vão estreitando-se e terminam como agulhas; debaixo de cada uma delas alongam-se paralelamente duas filas de pústulas decrescentes, as grossas perto da cabeça, as pequenas na ponta, e cada fila tem 25. Há cinqüenta pústulas em cada antena, e todo o animal tem quatrocentas. Essas pústulas são ventosas.

As ventosas são cartilagens cilíndricas e lívidas. Na grande espécie vão diminuindo de diâmetro – desde uma moeda de 5 francos até a grossura de urna lentilha. Esses pedaços de tubos saem e entram no animal. Podem meter-se no corpo de um homem mais de 1 polegada.

Este aparelho de sucção tem a delicadeza de um teclado. Levanta-se, esconde-se. Obedece à menor intenção do animal. As sensibilidades mais delicadas não igualam à contratibilidade dessas ventosas, sempre proporcionadas aos movimentos internos do bicho e aos incidentes externos. Este dragão é uma sensitiva.

Este monstro é aquele que os marinheiros chamam polvo, que a ciência chama cefalópode e a que a legenda chama kraken. Os marinheiros ingleses chamam-no devil-fish, o peixe-diabo. Chamam-no também blood-sucker, chupador de sangue. Nas ilhas da Mancha chamam-na pieuvre.

É muito rara em Guernesey, muito pequena em Jersey, muito grande e freqüente em Serk.

Uma estampa da edição de Buffon por Sonnini representa um cefalópode estreitando uma fragata. Dionísio Montfort pensa que na verdade o polvo das altas latitudes pode meter um navio a pique. Bory Saint-Vincent nega-o, mas atesta que nas nossas regiões o polvo ataca o homem. Quem for a Serk verá perto de Brecq-Hou, o buraco do rochedo onde uma pieuvre há anos agarrou, reteve e afogou um pescador de lagostas. Peron e Lamarck enganam-se quando duvidam que o polvo, não tendo barbatanas, possa nadar. Aquele que escreve estas linhas viu com seus próprios olhos, em Serk, na cova das Lojas, uma pieuvre perseguir, a nado, um homem que tomava banho. Foi morta e medida; tinha 4 pés ingleses de largura e pode-se contar quatrocentos chupadores. O bicho agonizante atirava-os para longe de si convulsamente.

Segundo Dionísio Montfort, um desses observadores, cuja alta intuição faz descer ou subir até o magismo, o polvo tem quase as paixões do homem; o polvo odeia. E, no absoluto,2 ser hediondo é odiar.

O disforme debate-se debaixo de uma necessidade de eliminação que o torna hostil.

A pieuvre nadando conserva-se, por assim dizer, na bainha. Nada com as antenas fechadas. Imaginem uma manga cosida com um punho dentro. Esse punho, que é a cabeça, impele o líquido e avança com um vago movimento ondulatório; os dois olhos, embora grandes, são pouco distintos por serem da cor da água.

A pieuvre, quando espreita a caça, esquiva-se; diminui-se, condensa-se; reduz-se à mais simples expressão. Confunde-se com a penumbra. Parece uma dobra de vaga. Assemelha-se a tudo, exceto a coisa viva.

A pieuvre é o hipócrita. Não se repara nela; repentinamente, abre-se.

Que há aí de mais medonho que isso: uma viscosidade com uma vontade! O viscoso amassado de ódio.

É no mais belo azul da água límpida que surge essa hedionda estrela voraz do mar. O que é terrível é que não se sente de longe. Quando a gente a vê, já está agarrada.

Contudo, à noite, e particularmente na estação do desejo, a pieuvre é fosfórica; aquele pavor tem os seus amores. Aguarda o himeneu. Faz-se bela, ilumina-se, e, do alto de algum rochedo, pode-se vê- la nas profundas trevas aberta numa irradiação, sol espectro.

A pieuvre anda; também nada. É um tanto peixe e um tanto réptil. Arrasta-se no fundo do mar. Utiliza as suas oito pernas. Roja-se como a lagarta.

Não tem osso, nem sangue e nem carne. É flácida. Não tem nada dentro. É uma pele. Pode-se virar-lhe os tentáculos de dentro para fora, como dedos de uma luva.

Tem um só orifício no centro dos oito raios. [ Esse hiato único é o ânus? é a boca? É os dois.

A mesma abertura faz as duas funções. A entrada é a saída.] 3 É fria toda ela.

Repelente bicho, é um do mediterrâneo. É um contato hediondo, essa gelatina animada que envolve o nadador, onde as mãos mergulham, onde as unhas trabalham, bicho que se rasga sem matar, e que se puxa sem tirar, espécie de criatura resvaladiça e tenaz, que escorrega entre os dedos; mas nada iguala a súbita aparição da pieuvre, Medusa servida por oito serpentes.

Não há aperto igual ao do cefalópode.

É uma máquina pneumática que ataca. Luta-se com o nada ornado de patas. Nem unhas nem dentes; uma escarificação indizível. Uma mordedura é temível; é menos ainda que uma sucção. A garra não iguala a ventosa. A garra é o animal que entra na carne; a ventosa é o homem que entra no bicho. Incham-se os músculos, torcem-se as fibras, rebenta a pele, debaixo de um peso imundo, jorra o sangue, e mistura-se horrivelmente à linfa do molusco. O bicho sobrepõe-se ao homem por mil bocas infames; a hidra incorpora-se ao homem; o homem amalgama-se à hidra. Ficam sendo um só. Pesa aquele sonho. O tigre pode antes apenas devorar; o polvo (horror!) aspira. Puxa o homem a si e em si, e, atado, enviscado, impotente, o homem sente-se lentamente esvaziado naquele terrível saco, que é um monstro.

Além do terrível, que é ser comido vivo, há o inexprimível, que é ser bebido vivo.

Esses estranhos animais4 são a princípio rejeitados pela ciência, segundo o hábito de sua excessiva prudência; depois estudados, descreve-os, classifica-os, inscreve-os, põe-lhes rótulos, procura exemplares; expõe-nos em museus; eles entram na nomenclatura; ela os qualifica moluscos, invertebrados, raiados; verifica-lhes as fronteiras; um pouco além os calamares, um pouco aquém os depiários; para estas hidras da água salgada acham um análago na água doce, o argironete; divide-os em grande, média e pequena espécie; admite mais facilmente a pequena espécie que a grande, o que é, em todas as regiões, a tendência da ciência, a qual é mais microscópica que telescópica; olha a sua construção e chama-os cefalópodes; conta as suas antenas e chama-os octópodes. Feito isto, deixa-os assim. Onde a ciência os larga, a filosofia os retoma.

A filosofia estuda por sua vez esses entes. Ela vai menos longe e mais longe que a ciência. Não os disseca, medita-os. Onde o escalpelo trabalhou, imerge a hipótese. Procura a causa final. Profundo tormento de pensador. Essas criaturas o inquietam quase sobre o criador. São as surpresas; hediondas. São os perturbadores do contemplativo. Ele as verifica desvairado. São as formas intencionais do mal. Que fazer diante dessas blasfêmias da criação contra si própria? A quem deve ele queixar-se?

O possível é uma matriz formidável. O mistério concentra-se em monstros. Lanhos de sombra saem deste penedo – a iminência –, rasgam-se, destacam-se, rolam, flutuam, condensam-se, enchem-se do negrume ambiente, recebem as polarizações desconhecidas, tomam vida, compõem uma forma com obscuridade e uma alma com o miasma, e vão-se, larvas através da vitalidade. É alguma coisa semelhante às trevas feitas animais. Por quê? Para quê? Volta a questão eterna.

Esses animais são fantasmas e monstros, a um tempo. São provados e improváveis. Ser é o fato, não ser é o direito. São os anfíbios da morte. A sua inverossimilhança complica a sua existência. Tocam a fronteira humana e povoam o limite quimérico. Negais o vampiro, aparece a pieuvre. É uma certeza que desconcerta a nossa segurança. O otimismo, que é a verdade, perde-se quase diante deles. São a extremidade visível dos círculos negros. Marcam a transição da nossa realidade a outra. Parecem pertencer a esse começo de entes terríveis que o sonhador entrevê confusamente na noite.

Esses prolongamentos de monstros, no invisível ao princípio, no possível depois, foram suspeitados, vistos talvez, pelo êxtase severo, e pelo olhar fixo dos magos e dos filósofos. Daí a conjetura de um inferno. O demônio é o tigre do invisível. A besta feroz das almas foi denunciada ao gênero humano por dois visionários, um que se chama João, outro que se chama Dante.

Se, com efeito, os círculos da sombra continuam indefinidamente, se, depois de um anel há outro, se isto vai em progressão ilimitada, se existe a cadeia, de que estamos resolvidos a duvidar, é certo que a pieuvre numa extremidade prova Satanás na outra.

É certo que o mau num limite prova a maldade no outro.

Todo animal feroz, como toda inteligência perversa, é esfinge. Esfinge terrível, propondo o enigma terrível. O enigma do mal.

Essa perfeição do mal é que faz inclinar às vezes os grandes espíritos para a crença do Deus duplo, para o tremendo bifronte dos maniqueus.

Uma seda5 chinesa, roubada na última guerra, no palácio do império da China, representa o tubarão comendo o crocodilo, o qual come a serpente, a qual come a águia, a qual come a andorinha, a qual come a lagarta.

Toda a natureza devora ou é devorada. As presas mastigam-se umas às outras.

Entretanto os sábios que também são filósofos, e por conseqüência benévolos para a criação, acham ou acreditam achar a explica ção disto. O fim destas coisas aparece, entre outros, a Bonnet de Genebra, aquele misterioso espírito exato, que foi oposto a Buffon, como mais tarde Geoffroy Saint-Hilaire o foi a Cuvier. A explicação dizem ser esta: a morte exige a inumação. Esses vorazes são coveiros.

Todas as criaturas entram umas nas outras. Podridão é alimentação. Assustadora limpeza do globo. O homem, carnívoro, também é coveiro. A nossa vida é feita de morte. Tal é a lei terrífica. Somos sepulcros.

No nosso mundo crepuscular, esta fatalidade da ordem produz monstros. Perguntais: por que? É por isto.

Será isto a explicação? Será esta a resposta? Mas então por que não será outra a ordem? Reaparece a questão.

Vivamos, seja.

Mas façamos com que a morte nos seja progresso. Aspiremos aos mundos menos tenebrosos.

Sigamos a consciência que nos leva para lá.

Porquanto, não o esqueçamos nunca, o preferível só é achado pelo melhor.

in Os Trabalhadores do mar - 2ª edição da tradução de Machado de Assis, feita em três volumes pela Tipografia Perseverança, Rio de Janeiro, em 1866. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

Notas Erráticas

1. A palavra pieuvre (polvo) pertencia ao dialeto normando e foi disseminada na língua francesa por Victor Hugo, com a publicação, em 1866, de Os Trabalhadores do mar. Adotada, em seguida, por George Sand e Maupassant, terminou por suplantar a palavra poulpe, ainda em uso no francês. Machado de Assis resolveu introduzi-la sem modificações no português.
2. Faltam as vírgulas na edição utilizada. No original: En effet, dans l'absolu, être hideux, c'est haïr.
3. O trecho entre colchetes não consta da edição, foi omitido por lapso ou pudicícia dos primeiros editores; (tradução nossa). Texto original: Cet hiatus unique, est-ce l'anus? est-ce la bouche? C'est les deux. // La même ouverture fait les deux fonctions. L'entrée est l'issue. Toute la bête est froide.
4. Corrigimos "animações" para "animais". No original: Ces étranges animaux(...)
5. Alteramos "rede" para "seda". No original: Une soie chinoise(...)

Ilustração: fusão digital de dois desenhos de Victor Hugo .